“Algum dia, quando tivermos dominado os ventos, as ondas, as marés e a gravidade, utilizaremos as energias do amor. Então, pela segunda vez na história do mundo, o homem descobrirá o fogo.”
Teillard de Chardin
Por que existimos? Qual o sentido de nossas vidas? Somos seres que dependem do grupo e sabemos disso e agimos conscientes dessa realidade ou simplesmente ignoramos nossa coletividade por uma individualidade separatista? Por que escolhemos o orgânico como movimento e como bandeira? Fazemos nossa parte ativamente para a construção de um planeta harmonicamente saudável ou simplesmente cumprimos regras e protocolos para comercialização de um produto com um selo distintivo? Até onde o ser orgânico caminha com o propósito do ser humano?
Ao longo dos tempos assistimos a cenários que puseram a humanidade frente a frente com sua pequenez na individualidade e subjugada pelos horrores de uma série de acontecimentos que revelaram ora a crueldade, ora a indiferença disfarçada de polidez, ora a ganância incontrolada, ora a desfaçatez do apego à métodos de produção improdutivos em sua essência e segregadores em seu resultado. Tanto pudemos assistir por nossos próprios olhos ou pelos olhos daqueles que nos antecederam e ainda assim somos obrigados a, mesmo hoje, olharmos na profundidade de nossos olhos e nos perguntarmos: como podemos aprender a ouvir o grito da Terra que chora o choro da nossa indiferença?
As crises do nosso tempo atual, cujas causas foram plantadas há bastante tempo e que infelizmente ainda continuam sendo cultivadas, se apresentam sob diferentes aspectos, mas todos profundamente interligados: diminuição das áreas agricultáveis, erosão do solo, mudanças climáticas, aquecimento global, destruição da camada ozônio, desmatamento, conflitos armados, conflitos velados, aumento do número de pessoas na linha de miserabilidade e vulnerabilidade, fome etc.
Não se trata de meras projeções mentais ou achismos. A crise é fato e sua existência cruelmente real é apontada em diversos dados de pesquisa ao redor do mundo e noticiada, talvez não tanto quanto deveria, pelos meios de comunicação em massa.
Mudanças climáticas estão afetando profundamente nosso mundo. Geleiras sendo derretidas. Notícias remotas e recentes apontam que os Alpes europeus estão enfrentando as maiores perdas de neve já sentidas nos últimos anos e talvez possamos ter que enfrentar a triste realidade que em grande parte daquela cadeia montanhosa a neve desapareça. O aquecimento dos oceanos e da atmosfera em maior velocidade, a onda de calor recorde que abala a Europa e os incêndios que atingem várias regiões daquele continente são consequências inegáveis das mudanças climáticas provocadas por incorretas e perigosas ações humanas. As emissões de gases de efeito estufa e suas concentrações estão em seus níveis mais críticos segundo o novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). António Guterres, secretário-geral da ONU, disse em mensagem que os dados apontados no relatório eram a prova do não cumprimento de promessas para proteger o planeta e nós mesmos e que “estamos num rápido caminho para o desastre climático: principais cidades debaixo d`água, ondas de calor sem precedentes, tempestades aterrorizantes, escassez generalizada de água e a extinção de um milhão de espécies de plantas e animais” e acrescentou que “Isso não é ficção ou exagero. É o que a ciência nos diz que resultará de nossas atuais políticas energéticas”. Segundo o relatório da ONU não apenas se deixou de aplicar políticas para diminuir a emissão de gases de efeito estufa, como a emissão aumentou em pelo menos 14%. A escolha na manutenção de investimentos em exploração de energias fósseis ao invés do investimento em formas renováveis ou verdes de energia, com melhores resultados para a vida na terra hoje e no futuro, não é apenas fato causado por decisões de grandes corporações e políticas governamentais (embora sejam as mais significativas), mas também é uma questão que toca às nossas escolhas como indivíduos. O que fazemos conscientemente para amenizar a dor da Terra?
Os efeitos das mudanças climáticas são e serão sentidos no solo, nas águas, nas plantas, nos animais, nas pessoas. A agricultura frontalmente atingida pelas intempéries que as catastróficas mudanças provocam não mais poderá ser palco para sustentar o jargão de que o método convencional é o único caminho para alimentar pessoas. Esse jargão é falso porque: a agricultura convencional não apenas é diretamente responsável pelas mudanças climáticas não desejáveis como também é incapaz de produzir alimento que seja saudável para alimentar dignamente pessoas e que seja bastante o suficiente para alcançar todas as bocas que necessitam comer.
O relatório Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2022, lançado pela ONU comprova isso e aponta que a fome atinge diretamente 9,8% da população mundial. Em 2021 mais de 820 milhões de pessoas sofreram o peso da fome.
Num recente estudo baseado em modelos computacionais, cientistas da Nasa preveem que as mudanças climáticas vão causar até 2030 uma inversão na produtividade de diversas culturas: o milho deve sofrer uma redução de mais de 20% enquanto o trigo pode ser “beneficiado” em mais de 18%. Só que esse suposto benefício ao trigo, causado pelo aumento de temperatura de zonas antes incultiváveis, vem à custa de perdas nutricionais. Significa que a produção de vida na terra, porque todo alimento é vida, somente perderá nalguma escala com as mudanças climáticas que estão se abatendo fortemente sobre nosso planeta.
Considerando que os eventos climáticos impactam de tal forma o mundo, é lógico concluir que o cenário econômico mundial também é afetado pelas alterações inaturais de clima.
Olhando para a cenário agrícola dentro desse contexto de crise evidente encontramos uma chama de esperança quando os operadores do campo, os que labutam na arquitetura e na paisagem produtiva de suas unidades agrícolas, emprestam consciência às suas práticas, não apenas obedecendo stricto sensu às normas de uma certificação, seja ela qual for (orgânica, socioambiental etc), mas desenvolvendo práticas de apoio, regeneração e harmonização entre todos os atores que habitam o cenário de cada unidade produtiva que, por sua vez, habita o cenário macro da Terra como uma individualidade coletiva que necessitamos aprender a entender e fornecer a ela o que ela necessita: respeito por suas leis. A maior de todas as leis da terra é a do equilíbrio.
O ecossistema do nosso planeta possui um equilíbrio que precisa ser mantido para que a vida aconteça e se mantenha. O agricultor pode e deve vivificar a terra e esta o compensará com o seu quantum necessário de equilíbrio. É a balança do equilíbrio que garantirá alimentos para todos, não práticas que levam ao stress e à degradação do solo. É a manutenção do equilíbrio que nos levará no caminho oposto ao da destruição. Por isso, não nos servirá a simples conformação ao movimento orgânico se não introduzirmos o movimento organicamente nos ciclos da terra e tomarmos cada canto deste planeta como um espaço que está sempre muito perto de nós. Assim, não teremos como ignorar os lixões que crescem, a fome que assola, a energia não renovável que exploramos, a terra que secamos, as árvores que desmatamos, o lixo que descartamos incorretamente e até mesmo o que nunca deveria ser tratado como lixo ou destinado ao lixo.
Essa é a crise do nosso tempo, a crise da indiferença aos eventos que são reais e que falam diante de nós com sua voz grave e perturbadora, nos apontando o peso de nossas ações inconscientes ou inconsequentes. Mas se formos capazes de ao menos reconhecermos que a crise é real, que ela existe e está aqui diante de nós, então poderemos compreender, nas palavras de Teillard de Chardin , que “a crise nada mais é do que um mal do crescimento por meio do qual se exprime em nós, como no trabalho de parto, a lei misteriosa que da mais humilde química à mais elevada síntese do Espírito, faz com que todo o processo rumo a uma unidade maior se traduza e se transmita, a cada vez, em termos de trabalho e de esforço.”
Se ouvirmos Chardin, podemos nos perguntar hoje: o que poderíamos fazer ativamente para contribuir positivamente com o Planeta que é nosso lar? E se nos perguntarmos isso dia após dia, podemos nos aproximar do trabalho e do esforço necessários para nos capacitar a habitarmos a terra, ouvindo-a e sorrindo as suas alegrias. Experienciando o contentamento de restaurar a terra devastada.