“Indivíduos enfileirados e padronizados na literatura e na agricultura, campo e cidade unificados pelo mesmo traço totalitário baseado no paradigma de perfeição da linha reta.”

A literatura é a arte de plantar uma letra após a outra. Para cultivar um texto que dê frutos, cada letra precisa ser plantada no local certo, com o espaçamento adequado. O espaçamento permite a cada letra respirar e fazer fotossíntese a cada vez que é lida pelos olhos do leitor. Assim como plantas que não são regadas, letras que não são lidas morrem.

As letras, como as plantas, podem ser plantadas à mão ou com máquinas. O trabalho de plantar letras à mão, chamado de caligrafia, chegou a ser uma arte em si mesma, especialmente nos períodos carol , gótico e romântico. Não podemos esquecer também a caligrafia árabe e oriental, que muitas vezes é mais importante que o próprio significado das palavras. Mas hoje a caligrafia, assim como a agricultura manual, é uma arte esquecida. Só alguns loucos cultivam letras e plantas à mão. Nem sequer se conseguem ferramentas adequadas: achar no mercado uma boa pena é tão difícil quanto arrumar um alfange.

A revolução industrial arrasou com os trabalhos manuais. Nas cidades, as penas e os tinteiros foram substituídos por máquinas de escrever; nos campos, as enxadas e os arados puxados por bois foram substituídos por tratores e colheitadeiras. Todas essas máquinas são clássicas do século XX, o século das grandes produções industriais.

O ato manual de escrever, que produzia no escritor uma relação específica com seu espírito, sua mente e seu corpo, criando um fio invisível desde o campo sutil das idéias até o seu braço, seu pulso e a cadência da pena no papel, transformou-se em um mecânico digitar de teclas arbitrariamente dispostas em uma superfície metálica, dura e fria. Era necessário trabalhar metodicamente, racionalmente.

Foi o século do papel A4. As letras não eram mais plantadas pelo deslizar suave da pena em papéis de formatos e texturas diversas. Eram batidas com força pelas teclas em relevo, que machucavam o papel enchendo os buracos com excesso de tinta, especialmente nas letras “o”. As letras não conseguiam respirar direito, os espaçamentos deixaram de ser orgânicos e passaram a ser mecânicos, todos iguais. Segundo o paradigma da época, essas fileiras de letras encaixotadas em espaços uniformes e em linhas perfeitamente retas eram a forma mais aprimorada de texto. Milhares de páginas A4 foram cultivadas em milhões de escritórios, desde os textos castrenses das delegacias até os livros que povoaram bibliotecas no mundo inteiro.

Da mesma forma, os tratores e as colheitadeiras povoaram nosso imaginário campestre com intermináveis planícies cultivadas com linhas paralelas a perder de vista, transgênicas monoculturas de trigo, de milho, de soja, sofrendo dependências químicas crônicas e cada vez mais fortes. A monocultura não é somente um termo do agronegócio; a monocultura está presente também nas cidades globalizadas e cada vez mais iguais entre si. Indivíduos enfileirados e padronizados na literatura e na agricultura, campo e cidade unificados pelo mesmo traço totalitário baseado no paradigma de perfeição da linha reta.

Existem diversos tipos de substrato para se plantarem letras. O mais conhecido é o papel, mas existem inúmeros outros, tais como tábuas de argila ou de madeira, papiro, pergaminho, metal, mármore e, mais recentemente, as mundialmente difundidas telas. De computador, de celular, de kindle. Todos estes substratos precisam ser corretamente adubados para que as letras possam crescer viçosas, agrupando-se nas diversas espécies que formam a flora textual: palavras, versos, rimas, estrofes, poemas, frases, parágrafos, capítulos, ensaios, romances.

Antigamente, nos substratos tradicionais adubados naturalmente, como o papel, as letras criavam raízes profundas. Quanto mais rústico o papel, mais fortes as raízes. As palavras tinham um intenso cheiro de tinta e celulose. Eram orgânicas. Nutriam aos leitores com textos longos, que eram saboreados e digeridos vagarosamente. Hoje é diferente. Vivemos tempos líquidos e, assim como comemos envenenadas verduras hidropônicas, lemos textos insípidos, cheios de veneno e liquidificados nos pobres substratos das redes sociais.

Este é o mundo em que nos toca plantar e escrever hoje. O século XXI não será mais o século das grandes produções industriais. Será o século do que nós decidirmos. E esse é um desafio muito cativante.

Nei Zuzek
Designer, Escritor e Hortelão.
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